ZANZADO EM TRAMA É ARMAÇÃO DE ARAPUCA
ZANZADO EM TRAMA É ARMAÇÃO DE ARAPUCA
Instalação composta a partir dos fragmentos de 65 armadilhas desmontadas
Dimensões variáveis
2021 - 2022
A armadilha sempre esteve presente no meu cotidiano, porque meu pai, Jorge da Costa, é armadilha. Cresci vendo ele criando objetos e movimentos de captura. Quando penso na travessia de uma família no tempo, vejo que há sempre uma coreografia incompleta que é passada de um para o outro, que nos informa parte dos gestos necessários para atravessar. É como se para cruzar a rua nos fosse informado previamente a necessidade de olhar para os dois lados. Mas depois precisamos aprender o passo e o caminho. Nomeio como ancestralidade essa parte dos gestos que performamos e que orientam nossa sobrevivência no mundo, é o pedaço da coreografia que nos mantém de pé, ou nos ensina a levantar. Então, acredito que toda dança que povoa o espaço é forjada entre a memória e o andado próprio do corpo no mundo. Herdamos uma coreografia incompleta para que possamos multiplicar os caminhos.
A partir do momento que passei a compreender o meu corpo como armadilha entendi também que a trama é a multiplicação das linhas do caminho, e que para ser uma boa armadilha impreterivelmente seria necessário ser várias, tal como meu pai é, e todas as pessoas que eu conheço que fazem armadilhas são. Zanzado em trama é armação de arapuca é a soma de várias encruzilhadas, é o desdobramento do passo, um giro no eixo central entre os rumos possíveis, a busca da compreensão de um jeito dilatado de ser armadilha. É a elaboração do músculo, da pausa, da ordem que desorienta. Um movimento que anuncia e renuncia.
Multipliquei as estratégias da minha presença me misturando com 65 armadilhas tramadas entre Minas Gerais e Bahia, que capturavam peixes, pássaros, moreia, tatu, guaiamu, siri, rato e polvo. Estudei o jeito com que cada uma delas negociava com o espaço para ser ao mesmo tempo imanência e invisibilidade. Compreendo Zanzado em trama é armação de arapuca como um estudo que está em movimento, é um trabalho que acontecerá outras vezes, mas que não se repete, porque é uma forma por vir e quando chega, precisa se refazer para a próxima aparição.
Ser armadilha é trazer o inimigo para dentro de si, e não é todo inimigo que se traz pra dentro. Ao desmontar as 60 armadilhas retirei de várias delas a capacidade de capturar. No meu bairro, Jardim Laguna, aprendi que se você sabe ameaçar, você está protegido, por isso o Laguna é uma reza que carrego no topo do crânio. A eloquência da ameaça é uma armadilha que se fantasia de armadura, um jogo, defesa que se anuncia com a musculatura relaxada.
Naturalmente a violência segue operando e a defesa segue sendo necessária, assim como é necessário não se defender, mas a brincadeira é um ensinamento de proteção antigo, uma esquiva do adoecimento do corpo. Ser armadilha é sim uma possibilidade de defesa e de ataque, mas sinto que atualmente tenho entendido ser armadilha principalmente como um posicionamento, uma atitude, um modo de existir no mundo. Isso me faz ter um corpo de aviso, que movimenta uma tessitura silenciosa da ameaça, como quem planta o susto para colher a pausa do ataque do outro. A pausa e a espreita como medida para a calma do zanzado. Todo músculo que só contrai adoece, o que nunca contrai adoece também. Diminuir as convocatórias de guerra do inimigo para ter mais tempo pra vadiar.
Luana Vitra, 2021
Ao ouvir uma história, somos capturados por tramas de tempos e espaços, movimentos de pés e mãos, corpos em infinitos. Sem a menção de palavras, encontramos o gesto em tom maior, que, também tramando entre obstáculos invisíveis, nos fala através de paisagens. Nessa reverberação de coreografias, em suas extensões, fins e começos, a artista Luana Vitra vai ao encontro de pessoas que se dedicam à caça, pesca e mariscagem e que, ao criar peças como as armadilhas, refinam um pensamento estratégico em um culto de práticas ancestrais negros e indígenas.
Com diversos nomes e formas, como armadilhas, como estrepes, caiçaras e arapucas, são corpos ampliados criados a partir de diversos fios condutores, que servem tanto para proteger como para não deixar desaparecer um modo de vida. São grafias tramadas por corpos incessantes que desenvolveram aprendizados sobre ciclos, principalmente os da natureza, para a obtenção daquilo que se quer. Contudo, sem uma intenção extrativista e de soberania, mas em confluência com seus territórios, ventos e águas.
As memórias do artista também são estímulos para a percepção do pensamento que contorna e permite uma prosperidade na lógica e no raciocínio de formular armadilhas, uma engenharia presente em seu cotidiano. Assim, essa caminhada se inicia em Contagem, sua cidade natal, e segue em um movimento de subida, percorrendo cinco localidades da Bahia - Serra Grande, Moreré, Salvador, Conceição de Salinas e Graciosa. Zanzado em trama é armação de arapuca é um exercício de se compor em armadilhas, reorganizando-se entre montagens e desmontagens os fragmentos das peças encontradas, um processo que compreende sua feitura enquanto atributo do tempo, a construção de uma trama que organiza pensamento e ação frente a uma estrutura de mundo que insiste em ser violenta com corpos racializados não brancos. Ao se colocar como uma armadilha no mundo, Luana Vitra encontra seu eixo entre estados de alerta que permite o susto enquanto posição de ameaça e autodefesa.
Instalação composta a partir dos fragmentos de 65 armadilhas desmontadas
Dimensões variáveis
2021 - 2022
A armadilha sempre esteve presente no meu cotidiano, porque meu pai, Jorge da Costa, é armadilha. Cresci vendo ele criando objetos e movimentos de captura. Quando penso na travessia de uma família no tempo, vejo que há sempre uma coreografia incompleta que é passada de um para o outro, que nos informa parte dos gestos necessários para atravessar. É como se para cruzar a rua nos fosse informado previamente a necessidade de olhar para os dois lados. Mas depois precisamos aprender o passo e o caminho. Nomeio como ancestralidade essa parte dos gestos que performamos e que orientam nossa sobrevivência no mundo, é o pedaço da coreografia que nos mantém de pé, ou nos ensina a levantar. Então, acredito que toda dança que povoa o espaço é forjada entre a memória e o andado próprio do corpo no mundo. Herdamos uma coreografia incompleta para que possamos multiplicar os caminhos.
A partir do momento que passei a compreender o meu corpo como armadilha entendi também que a trama é a multiplicação das linhas do caminho, e que para ser uma boa armadilha impreterivelmente seria necessário ser várias, tal como meu pai é, e todas as pessoas que eu conheço que fazem armadilhas são. Zanzado em trama é armação de arapuca é a soma de várias encruzilhadas, é o desdobramento do passo, um giro no eixo central entre os rumos possíveis, a busca da compreensão de um jeito dilatado de ser armadilha. É a elaboração do músculo, da pausa, da ordem que desorienta. Um movimento que anuncia e renuncia.
Multipliquei as estratégias da minha presença me misturando com 65 armadilhas tramadas entre Minas Gerais e Bahia, que capturavam peixes, pássaros, moreia, tatu, guaiamu, siri, rato e polvo. Estudei o jeito com que cada uma delas negociava com o espaço para ser ao mesmo tempo imanência e invisibilidade. Compreendo Zanzado em trama é armação de arapuca como um estudo que está em movimento, é um trabalho que acontecerá outras vezes, mas que não se repete, porque é uma forma por vir e quando chega, precisa se refazer para a próxima aparição.
Ser armadilha é trazer o inimigo para dentro de si, e não é todo inimigo que se traz pra dentro. Ao desmontar as 60 armadilhas retirei de várias delas a capacidade de capturar. No meu bairro, Jardim Laguna, aprendi que se você sabe ameaçar, você está protegido, por isso o Laguna é uma reza que carrego no topo do crânio. A eloquência da ameaça é uma armadilha que se fantasia de armadura, um jogo, defesa que se anuncia com a musculatura relaxada.
Naturalmente a violência segue operando e a defesa segue sendo necessária, assim como é necessário não se defender, mas a brincadeira é um ensinamento de proteção antigo, uma esquiva do adoecimento do corpo. Ser armadilha é sim uma possibilidade de defesa e de ataque, mas sinto que atualmente tenho entendido ser armadilha principalmente como um posicionamento, uma atitude, um modo de existir no mundo. Isso me faz ter um corpo de aviso, que movimenta uma tessitura silenciosa da ameaça, como quem planta o susto para colher a pausa do ataque do outro. A pausa e a espreita como medida para a calma do zanzado. Todo músculo que só contrai adoece, o que nunca contrai adoece também. Diminuir as convocatórias de guerra do inimigo para ter mais tempo pra vadiar.
Luana Vitra, 2021
ZANZADO EM TRAMA É ARMACAO DE ARAPUCA
Por Ariana Nuala, 2021Ao ouvir uma história, somos capturados por tramas de tempos e espaços, movimentos de pés e mãos, corpos em infinitos. Sem a menção de palavras, encontramos o gesto em tom maior, que, também tramando entre obstáculos invisíveis, nos fala através de paisagens. Nessa reverberação de coreografias, em suas extensões, fins e começos, a artista Luana Vitra vai ao encontro de pessoas que se dedicam à caça, pesca e mariscagem e que, ao criar peças como as armadilhas, refinam um pensamento estratégico em um culto de práticas ancestrais negros e indígenas.
Com diversos nomes e formas, como armadilhas, como estrepes, caiçaras e arapucas, são corpos ampliados criados a partir de diversos fios condutores, que servem tanto para proteger como para não deixar desaparecer um modo de vida. São grafias tramadas por corpos incessantes que desenvolveram aprendizados sobre ciclos, principalmente os da natureza, para a obtenção daquilo que se quer. Contudo, sem uma intenção extrativista e de soberania, mas em confluência com seus territórios, ventos e águas.
As memórias do artista também são estímulos para a percepção do pensamento que contorna e permite uma prosperidade na lógica e no raciocínio de formular armadilhas, uma engenharia presente em seu cotidiano. Assim, essa caminhada se inicia em Contagem, sua cidade natal, e segue em um movimento de subida, percorrendo cinco localidades da Bahia - Serra Grande, Moreré, Salvador, Conceição de Salinas e Graciosa. Zanzado em trama é armação de arapuca é um exercício de se compor em armadilhas, reorganizando-se entre montagens e desmontagens os fragmentos das peças encontradas, um processo que compreende sua feitura enquanto atributo do tempo, a construção de uma trama que organiza pensamento e ação frente a uma estrutura de mundo que insiste em ser violenta com corpos racializados não brancos. Ao se colocar como uma armadilha no mundo, Luana Vitra encontra seu eixo entre estados de alerta que permite o susto enquanto posição de ameaça e autodefesa.