A ARTE DE ARMADILHAR MATÉRIAS
Texto crítico para exposição Três Guerras no Peito, de Luana Vitra para o Programa de Exposições CCSP 2020.
Por Cíntia Guedes
Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta
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Para fabular uma reflexão crítica sobre o fazer artístico de Luana Vitra, e mais especialmente sobre a exposição Três Guerras no Peito, proposta para o Programa de Exposições CCSP 2020, seria preciso saber dizer algo no 'presente do pretérito', alçar palavras para tocar as coisas que já 'foram' e continuam 'sendo'. Contudo, não estabelecemos na linguagem um tempo verbal para relatar travessias de desterro e retornos impossíveis.
Luana Vitra, que antes de tornar-se artista visual já se sabia dançarina, faz da ignorância um método para se aproximar dos materiais que chegam às salas de exposição, adotando a linha limítrofe entre o que se sabe e o que se ignora como modo de ir. Seus objetos e instalações são resultantes de uma pesquisa que opera ativações da percepção sobre movimentos mínimos, denota a habilidade da artista em reconhecer os contornos sutis das matérias imersas nas voltas de um tempo expandido.
Trata-se de tangenciar os limites do des/conhecer. Não há definições prévias do aspecto que pregos, cimento, latas, arames, placas de ferro e madeira devem ter, ou das imagens que poderão compor nas obras. O que existe é uma certa sincronicidade entre o que os materiais oferecem e as paisagens retidas pela memória das pessoas visitantes, evidenciando a qualidade performativa do tempo. Além da narrativa contida em cada matéria, e das possibilidades de composição formal, é, sobretudo, o caráter instável na relação com o tempo, ou seja, a potência de re/des/aparição, que ganha relevo.
A dança, como movimento sensível que prescinde de pontos de partida ou linhas de chegada, é mais que um dado biográfico referente a formação da artista, que se vale da perspicácia herdada do improviso para armadilhar as matérias.
Hoje Luana vive em Belo Horizonte-MG, entretanto, ainda encontramos Contagem-MG na exposição, cidade onde ela cresceu, e onde vive sua família. Uma cidade queima matéria. Na indústria o tempo da transmutação de elementos tem o fogo como mandatário. Tudo está entre a consumição e o apagamento. No ar, a presença da fuligem é, a um só tempo, o pó e o ferro. Talvez o pó seja uma das únicas coisas que permanecem, às vezes até dentro do peito.
O primeiro gesto que Luana performa, usualmente no quintal da casa onde cresceu, é encontrar e escolher as matérias quando elas fazem um caminho de volta a condição de natureza. É precisamente na tentativa de retorno, despencadas do reino das coisas úteis, apresentando novas gramatura, texturas, cores, e suspensas em um certo estado de abandono, que Luana oferece às matérias o destino das imagens. Uma vez destituídas de seus usos fabris, elas são reintegradas ao mundo como fragmentos de horizonte.
Um olhar apressado pode se servir da exposição para acionar o argumento da precariedade, dada a origem residual, a fragilidade e a efemeridade dos materiais, entretanto, o trabalho não encontra nesta insígnia uma chave possível de leitura. Luana opera na ordem da reminiscência, mas não o faz como resposta reparadora, tampouco é adepta de um elogio da escassez. O exercício consiste em estar atenta a transmutação como condição perene daquilo que permanece e imprime no mundo a marca de uma existência. Não é sobre padecer. A engenharia na justaposição dos elementos nos informa sobre metamorfose, e a única medida
de valor possível para uma balança é a antiguidade que colore as pedras.
É a artista e pesquisadora Leda Maria Martins que nos acompanha e oferece as brechas para apreensão de uma estética da reminiscência, e com ela ensaiamos essa resposta a exposição Três Guerras no Peito. Leda Martins aponta que os movimentos curvilíneos e prospectivos da memória intencionam o resgate de matrizes, mas só podem realizar tal movida através da transcriação de novas posições presenças para aquilo que assumimos como pretérito. Estando em diáspora sabemos que também os apagamentos são incompletos. Retornar não é apenas buscar origens, mas embarcar em um movimento pendular entre lembrança e esquecimento.
A imagem que se faz, na coloração da ferrugem ou nas linhas montanhosas do ferro recortado, é sempre nova, mas nunca inteiramente desconhecida, já está realizada tanto antes quanto depois do instante que a restitui 2. Ou ainda como conhecemos pela literatura de Toni Morrison,
Estava falando do tempo. É tão difícil pra mim acreditar no tempo. Algumas coisas vão embora.
Passam. Algumas coisas ficam. Eu pensava que era minha rememória sabe. Algumas coisas
você esquece. Outras coisas você não esquece nunca. Mas não é. Lugares, os lugares ainda
estão lá. Se uma casa pega fogo, desaparece, mas o lugar - a imagem dela - fica, e não só na
minha rememória, mas lá fora, no mundo.3
Armadilhar é o gesto de quem decide dançar junto às coisas não humanas, e, com delicadeza e precisão, implicar-se com elas na fabulação de uma temporalidade diaspórica, que insiste em retornar ainda que não mais existam os lugares de origem que indicariam o fim da jornada. É o fazer-se em rotas imprecisas que, ao serem percorridas, perturbam o destino linear da degradação das matérias e soterramento dos territórios da memória.
Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta, e num vislumbre desse movimento Três Guerras no Peito nos informa que as coisas que desaparecem seguem possuídas pelas imagens.
1 Leda Maria Martins, em Performances do tempo espiralar (2002).
2 Ver nota 1, p.85.
3 Toni Morrison, em Amada, [1087], 2011.
2 Ver nota 1, p.85.
3 Toni Morrison, em Amada, [1087], 2011.