CARREGAR O POEMA NAS COSTAS


Esther az, 2019


hoje Luana me ligou. falou sobre “carregar o horizonte no topo do crânio para devolver ao corpo vertical a possibilidade de ser paisagem”. ela tem essa capacidade, de alterar a densidade do ar quando partilha o seu entendimento do mundo. o tempo adquire consistência de veludo-lixa, e nos envolve o corpo num afago arriscado. tudo fica sem pressa.

às vezes, enquanto fala, ela pára, e permanece alguns segundos a revolver a terra de si mesma, em busca da palavra exata. quem escuta espera, com os olhos vivos, pelo gesto preciso que virá em forma de vocábulo.

sua matemática calcula sem regras e acerta sem trena.

seus gestos nos permitem ver com escureza a idade das montanhas.

observo agora aqui, essa trama de retas e curvas inacabadas fabricando em mim um estado de incabível. nos trabalhos de Luana, a moldura quase nunca está a exercer sua função comum: proteção, limite, recorte. o que vemos são proposições para o incontível. cercos em exercícios de falha querem se espraiar, tecer aliança de força com o aberto.

‘carregar o poema nas costas’ é sobre o corpo político das matérias: o minério arrancado das montanhas é transmutado em lata, forma enrijecida destinada ao exato cabimento. mas o tempo, a certa altura, convida a lata a desistir, se aposentar da função que a indústria lhe imprimiu. e é exatamente quando o corpo da lata cede à terra e retoma sua feição imprecisa, curva, montanhosa, que Luana age, transpondo esses acontecimentos. assim nos faz irrecusável chamado para o cru.

sinto que não há melhor lugar do que este para dizer da arte como potencial laboratório de práticas para a cura do mundo. vê como algo nos cura enquanto Luana desenha? parece que o peso do mundo cabe numa colher suspensa pelos dentes.

e se o subtrair das montanhas ergue cercos com prontidão para a falência, somos os agentes de transposição dessas paisagens.

montanhas em locomoção exalam desejo de ruínas.