no fundo da terra, dançar o infinito


abigail Campos Leal


essas composições são florestas
o ferro é fértil, por isso brotamos nossas raízes no fundo da
terra
então, nossas folhas são metais voláteis

Óxida (tratado sobre todas as coisas, 4550 a.C., p. 8)



    o trabalho de Luana Vitra não apenas se apresenta diante de nós, mas nos leva a muitos lugares. esse apresentar-se y esse levar-se apenas atestam o magnetismo que a sua carne carrega. somos atraídas pelo seu trabalho como abelhas vigorosas zanzando em busca daquele melzinho suculento que foi farejado. somos atraídas pelo seu trabalho porque o seu trabalho é foda! Luana Vitra nutriu em silêncio y segredo, durante seis anos de estudos na Escola Guignard – UEMG, a força cósmica de sua criação, como um Vulcão paciente que espera a hora exata de entrar em cena. o seu magnetismo emana dessa memória geográfica que é também uma poesia astrofísica. Luana Vitra está emaranhada no fundo da terra, portanto, no espaço sideral. y sente isso. se conecta permanentemente com o Infinito, y essa conexão é também o magma do seu mel. não se enganem, Vitra também se atrai: pela terra, pelo ferro oxidado, pela folia da eletrólise, pelo fogo azul, pelas raízes, pelo voo dos peixes, pela dança das folhas que caem. a composição não é apenas seu exercício de vidaarte, mas o seu destino. o espaçador, instrumento da construção civil em formato de cruz, muito utilizado por pedreiros/as para separar y posicionar azulejos, presente em inúmeros trabalhos de Vitra, pode funcionar como uma pista dessa estrada magnética. sinto, então, o trabalho de Vitra como um aglomerado de adições, onde podemos ver, tocar y farejar inúmeros sinais de mais/adição (“+”) em seus trabalhos. y é isso que Vitra faz: uma grande, instintiva y planejada, orquestra de composição das coisas. espaçador azul + engrenagem oxidada marrom + anzol prateado + seta marrom + fundo quadriculado branco. o que também pode ser: conexão alegre + trabalho explorador cansado + alimentação saudável + fluxo imposto + moradia insalubre. essa é uma das formas que posso delirar fio desencapado, isca de confusão (Vitra, 2022). essa não é tanto a descrição formal de uma obra, mas formulação poética do nosso feitiço. não se trata apenas de uma forma belíssima de como juntar as coisas, mas da arte ancestral de se emaranhar na infinitude
   
    Luana Vitra também se compõe com a matéria viva do Mundo. existe ferro no meu sangue y uma pedra de 1 cm na minha vesícula; sou mineral, portanto. mas y Luana Vitra? ah, aí é outra coisa, meu bem. Vitra é bronze relembrando sua dança preferida. Vitra me disse que quando está com alguma dificuldade afetiva, busca respostas no mundo mineral: como ferro responderia a essa violência racista? como chumbo escreveria essa carta de amor? não se trata tanto de pensar como minerais, mas lembrar-se ser ferro para despensar o Humano. é sobre sentir ferro vibrando em si. é isso também que o trabalho de Vitra, misteriosamente, comunica. é aí também que reside seu magnetismo. apesar da aparente dureza y resistência que existe nos minerais, através da sua composição, podemos sentir na sua arte que, de fato, a matéria sabe dançar. assim, os seus trabalhos, que na maior parte de vezes são classificados como instalação ou escultura, podem também ser sentidos como uma poesia declamada ou como um curta metragem. grudado numa parede, pendurado no teto ou saindo do chão, é a terra quem vozea, é o mar quem folguea

    não é apenas que Luana Vitra presta uma homenagem à terra, mas a terra, através da sua carcaça, dá testemunho de sua grandeza y sagacidade. a matéria se apresenta de maneira fulgurante no seu trabalho, ergue-se diante de nós como uma senhora teimosa, impaciente, esperando o reconhecimento de seu esplendor, mas é preciso farejar aí o que o espírito sussurra. talvez seria melhor dizer Èmi, seguindo os caminhos do povo Yorubá, palavra polissêmica que, dentre seus muitos significados, pode ser traduzida tanto como espírito quanto coração. ou, ainda, Ba, enveredando pela trilha povo de Kemet, palavra que pode ser traduzida como alma ou espírito. entre o coração y o espírito, é o calor da matéria cósmica que sussurra seus segredos através da carne de Vitra. esse sussurro é uma oração. porque para criar ela precisa dançar. a dança, aqui, não dá seu nome somente porque sabemos que nessa encarnação Luana Vitra estudou dança desde criança, praticando-a a maior parte de sua vida, mas porque a coreografia é a maior y mais velha Lei do Infinito

    y nessa encarnação Vitra veio para refazer a História. não digo apenas no sentido da História da Arte, por exemplo, que sofre, agora, um abalo sísmico com a sua chegada y de tantas outras forças escuras que se erguem como enormes cordilheiras enfurecidas, mas também a História das Coisas, a História da Matéria. Luana Vitra nasceu em Contagem (Minas Gerais), terra devastada pelo racismo ambiental da mineração y fertilizada pela teimosa resistência da diáspora de áfrica y dos povos originários que, entre choros y danças, tramam silenciosamente o momento da retomada. seu trabalho é, portanto, a trama dessas forças, é ferro y carne preta vermelha se mancomunando para refazer não apenas a História da Arte, mas através da arte, refazer a História da Mineração. não é ela quem abre essa refeitura, mas a própria terra. seu bisavô, Domingos Zacarias, foi uma figura que ferro assumiu para passar adiante o legado de amor às formas y que, mesmo soterrado pela História colonial, vive através da sua arte

    Èmi y Ba da terra, que respiram vivos em Vitra, refazem não apenas a História da Arte, nem mesmo a História da Matéria, mas desfazem a História mesmo, pois o seu trabalho cósmico conhece a passagem que existe antes do Tempo. seu trabalho presta homenagem ao que se convencionou chamar de matéria y com isso, reverencia também a ruína. na tradição eurobranca, a ruína está impregnada de valorações negativas, mas em seu trabalho a ruína emerge como espaço de fuga, isto é, de guerra y de calmaria, como espaço de encontro. seu trabalho faz carinho na ruína, porque sabe que ela é também nossa mãe, essa velha misteriosa. por isso também somos atraídas pelo seu magnetismo, pois transformar o carinho na ruína em arte é também uma forma de oferendar afagos. algumas obras de arte me parecem a criação de Mundos em seu estado mais latente. mas alguns de seus trabalhos, como desejo-ruína (Vitra, 2001-2020), são a gênese do que ainda não nasceu y a ruína do que ainda permanece vivo, uma zona limítrofe do antes y depois desses Mundos latentes

    talvez a ruína seja, de fato, como diz Luana Vitra, a ancestral da metamorfose. tomando essa frase não como uma máxima mas como uma oração, podemos arruinar a ficção colonial da presença y seu legado de violência y destruição. podemos também arriscar exercícios impossíveis: transicionar do reino animal para o reino sideral; aprender no contato com o chão uma outra carcaça; ter uma geologia mais volátil do que a do Capital; esquentar o pé até ele atingir a temperatura para fundir o Real. a infinitude cósmica de tudo que existe, existiu y existirá, possui a carne ferruginosa de Luana Vitra y, através da sua arte, nos oferta essas outras possibilidades de respirar para sempre

– eu vim aqui para acabar com tudo! – disse Ventania erguendo suas patas peludas com as palmas viradas para cima, com um sorriso aberto, mostrando seus dentes de drucaryum afiados y disformes como os de um tubarão. ao fundo, sob os escombros, começavam a se erguer árvores frondosas, feitas de metal azul y rochas cristalinas.Zanzado V. Nascimento (eu era a ruína, 2053, p. 210).